Como evangelizar desde a cátedra

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Padre Alfredo Saénz, SJ

I. BREVE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

A educação é um tema perene. Já os gregos se preocupavam com a formação do homem integral e o pensaram sobretudo com base em duas atividades: a ginástica e a música. A ginástica para a formação do corpo e a música (ou belas artes) para a educação da alma. Assim tratavam de conquistar o homem da areté, o homem da virtude.

Chegada a época do cristianismo, planteou-se imediatamente na Igreja primitiva o problema da vinculação das matérias profanas com a revelação cristã. Isto foi motivo de muitas discussões, que tiveram como protagonistas a alguns Santos Padres e escritores eclesiásticos, discussões que versaram acerca da relação entre o Evangelho e a cultura grega, ou, como disse Tertuliano, entre Paulo e Aristóteles. Razão e revelação, filosofia e cristianismo, natureza e graça: eis os dois elementos que puderam ser considerados em relação dialética.

O feito é que, com o tempo, foram-se produzindo a anelada síntese entre a revelação – que provinha do âmbito do povo eleito – e a cultura do mundo greco-romano – derivada do âmbito do qual os judeus chamavam “as nações” ou gentios. Ambas as coisas: a revelação e a cultura, ainda que de distintos modos, brotavam da mesma providência divina. Ao fim e ao cabo, Cristo não era senão a plenitude dos tempos, não só a plenitude da revelação, mas também a plenitude da sabedoria, o Logos encarnado. Graças principalmente aos intentos da escola palatina de Carlos Magno, dirigida por Alcuíno, foi-se organizando a primeira educação católica que alcançaria um momento de apogeu na Idade Média, a tão vilipendiada Idade Média.

O ensino se repartia em “Trivium”, constituído pela gramática, a retórica e a dialética, ou seja, o ensino do idioma latino, da literatura e da oratória e da arte da razão, do raciocínio. O “Quadrivium” completava a formação intelectual adicionando a aritmética, a geometria, a astronomia e a música. Esta última disciplina compreendia as diversas artes liberais: a poesia, a história e a música propriamente dita. Entretanto, o ensino não ficava circunscrito a estas sete matérias. Trivium e Quadrivium não eram mais que meios; o fim consistia em formar os alunos na verdade e na sabedoria. Todo o estudo das diversas matérias humanas estava repleto de Deus, de Cristo, de Igreja, estava banhado na teologia, no conhecimento do mundo sobrenatural, sem exclusão alguma, Cristo era considerado o Rei não só das nações – Rex regnum, mas também da cultura – Rex veritatis.

A partir do final da Idade Média começa um processo de desintegração da cultura. O primeiro passo quem dá é o Renascentismo. O homem do Renascentismo continua sendo cristão: para ele, teoricamente Deus segue existindo, porém, a glória de Deus vai progressivamente sendo substituída pela glória do homem. Este homem é o que afirma a graça e o pecado, sua filiação divina etc., mas que na prática se converte em homem frio, sem fé. O gênio e o artista substituem o homem virtuoso. O príncipe maquiavélico sucede o rei santo, “ao estilo São Luís”. Interessa mais o novo homo universalis que o homo religiosus do “obscuro” medievo. Subsiste a religião, mas separada de todo o resto. O temporal profano pretende independência absoluta; não só justa autonomia, mas independência total. A filosofia rompe com a teologia; o direito, a política e a arte se divorciam da moral. Está inaugurada a era das rupturas e da rebelião.

Logo vem o Protestantismo, que implica um avanço na linha da eclesiologia desintegradora daquele edifício arquitetônico que havia constituído a grandeza da cristandade medieval. Deus existe, sim, porém dele se distanciam mais e mais, até o mundo irracional. Desse modo, a Igreja, expulsa antes do âmbito temporal, o é também agora do âmbito religioso. É, inclusive, alienada do homem individual, que de agora em diante, recorrendo ao livre exame, deverá entender-se a sós com Deus. E dentro mesmo do homem, a fresta entre graça e natureza se vai ampliando, já que, segundo a concepção protestante, a graça é algo puramente extrínseco que cobre, mas não sana nem eleva propriamente o homem. Por sua vez, o mundo está muito mais secularizado, não só porque a Igreja foi exilada do temporal, mas também porque inclusive os templos materiais deixaram de ser templos sacros ao desaparecer deles o sacrifício e ao ficar reduzido ao mínimo a sacramentalidade.

Depois dá-se outro passo: o Deísmo, que surgindo na Inglaterra, passa logo à França e Alemanha com o nome de Iluminismo ou Aufklarung. O processo de rebelião avança. Agora vai comportar em si a negação de toda a ordem sobrenatural. Deus existe, sim, mas não é o Deus da revelação, o Deus uno e trino, mas o Criador da ordem natural, o supremo “Fabricante”, o Arquiteto, que fez o mundo e se foi. Um Deus que está no princípio e no fim, mas não está no presente, na história. E o que conta para este homem é tão somente a história, o intra-histórico. É a época da setorização do ensino, do enciclopedismo maçônico. É o mundo liberal, burguês, o mundo do homo faber, do rendimento, do negócio.

Finalmente ascende o Materialismo contemporâneo, o individual freudiano e o social marxista. Não somente se expulsa a Igreja – como no protestantismo, nem só a Cristo – como no deísmo, mas agora também a Deus, proclamando-se o ateísmo, ou melhor, o antiteísmo mais radical. Porque, mesmo Deus não existindo, deve ser combatido como existisse. O homem é só matéria. Qualquer pretensão de espiritualidade, especialmente no nível da educação, constituiria uma miragem alienante. E o mundo se converte em um formigueiro, um enorme Gulag.

Nós, que vivemos nesta época, neste século XX, que recebeu os desemboques de todo esse enorme processo iniciado no Renascentismo ou no fim da Idade Média. E é precisamente o âmbito da cultura o que foi mais bombardeado pelas forças desintegradoras. Hoje todos os valores estão na tela do juízo: a verdade, o bem, a beleza, o amor, a pátria, a família, Deus, tudo. E conste que não se trata de uma crise localizada em um espaço determinado, mas se estende perigosamente, já que praticamente incide sobre a totalidade do mundo através dos meios de comunicação em massa. Uma crise que, para além dos limites, se apresenta encarnada em personagens da literatura, ou em personagens reais do cinema, da arte, o que resulta em algo ainda mais impactante.  A consequência: o homem se sente vazio, incapaz de pensar, com uma desbocada apetência de sensações e de coisas materiais, que experimenta uma espécie de frenesi a fim de vencer o terrível aborrecimento que o disseca.

Dizia Chesterton que as velhas virtudes cristãs voltaram loucas. Como se produziu esse enlouquecimento? Primeiro, desconectando-se as virtudes entre si. A caridade, por exemplo, desconectada da verdade, pode levar-nos a amar tanto o pecador que acabemos por dizer que o pecado não é pecado. Segundo, desarraigando-se as virtudes de suas respectivas potências. Assim, a uma virtude cristã tão fundamental como a humildade, que tem seu próprio lugar na vontade, muda-se de potência, e a encaixa na inteligência. Temos, então, um homem relativista, cético. Temos um homem a quem a certeza angustia; sua paz reside na dúvida. Virtudes, pois, desconectadas; virtudes desligadas de suas potências e objetos. Mais ainda: há ocasiões em que as potências e os hábitos atuam mesmo sem objeto algum. Funcionam no vazio, patinando como rodas sobre o barro. É o que se passa com frequência com o homem do nosso tempo, que se sente angustiado, deprimido, sem saber por quê, e então odeia e declara repugnante a realidade com que se depara, qualquer que seja ela. É o niilismo, a culminância e o paroxismo do subjetivismo, do auto encerramento do homem que se quis autossuficiente.

II. O COLÉGIO CATÓLICO

Frente a este mundo apóstata de Jesus Cristo e de sua santa Igreja, urge-nos a árdua, mas apaixonante tarefa de evangelizar. Ai de nós se não evangelizarmos![2] Pois bem, o colégio católico tem a este respeito um papel substancial. A evangelização, diz o documento de Puebla, inclui a educação, porque a Igreja quando evangeliza não desumaniza o homem, antes, o enobrece. E ainda que a educação não pertença ao conteúdo essencial da evangelização, pertence, entretanto, ao seu conteúdo integral. “A evangelização será mais humanizadora na medida em que mais se abrir à transcendência, ou seja, à medida em que se abrir à Verdade e ao Bem”. Não há, pois, duas etapas: primeiro humanizar, depois evangelizar. Enquanto evangelizo estou humanizando, educando. Assim aconteceu ao largo de toda a história da Igreja.

1. Educação de todas as potencialidades

Como bem e detalhadamente explicou Caturelli, a educação se ordena à atualização crescente e harmônica de todas as potencialidades do homem (desde o existir ao entender), até que a mesma natureza do homem alcance sua plenitude. O verdadeiro mestre é aquele que de tal modo sabe desenvolver os bons hábitos em seus alunos, que estes alcancem o total senhorio de si mesmos, de modo que o adolescente chegue a “possuir-se” de verdade a si mesmo, por um grau crescente de interiorização da verdade. Perfeição antes de tudo nos hábitos técnicos, que se ordenam ao domínio das coisas que simplesmente existem, para o qual é necessário um conhecimento sumário da natureza inanimada; em um segundo grau, o logro de um conhecimento também sumário da natureza viva; para concluir, o conhecimento da realidade espiritual, a sua própria realidade, que resume em si mesma toda a riqueza entitativa: o homem, mediante a formação dos hábitos que perfeccionam a natureza humana total, ou seja, as virtudes intelectuais que dispõem para a ciência e, sobretudo, virtudes morais que o ordenam ao Bem.  Uma educação que compreende estes três graus, será, deveras, uma educação integral. Gerará planos de estudo coerentes. Selecionará os professores não somente dentre os de maior saber, mas dentre os de maior virtude. Procurará que os hábitos intelectuais se desenvolvam no estudo intensivo das humanidades e os hábitos morais em ordem à integridade da natureza humana.

Porém, isto não é tudo: formar o adolescente em sua integridade total apenas com as forças da natureza é um fim inalcançável. Para chegar à plena possessão da Verdade, do Bem e do Ser, necessita-se de algo que está além da natureza. Por isso, uma verdadeira educação que não queira eliminar-se a si mesma como educação, deve colocar-se em estado de abertura ao sobrenatural, pois só mediante um salto que transcenda o contingente é que se pode alcançar o Absoluto, único âmbito em que se pode lograr a formação integral do homem. Se a educação não quer se suicidar como educação total, deve estar metodicamente disposta a não limitar sua ascensão aos graus de ser naturais, por mais sublimes que sejam. Só existem dois caminhos: ou abrir-se à ordem do sobrenatural ou cerrar-se sobre si mesma. Neste segundo caso, anula o fim da educação ao limitá-la arbitrariamente só ao natural; e se anular o fim da educação, anula-se a educação mesma, já que não é concebível uma educação sem finalidade alguma.

Não se pode formar o adolescente quando não se atendem as suas diversas “religações”. O homem é um ser religado de múltiplas maneiras. Religado aos outros, por ser um “animal social”. Religado ao mundo, como integrante da natureza. Religado à lei moral, por suas exigências de perfeição. Religado ao tempo e à história, enquanto herdeiro de uma tradição e de uma cultura. Religado ao Absoluto, por sua condição de criatura. Religado finalmente a Cristo, por seu caráter de redimido. Uma educação que não atenda a todas estas religações não será verdadeiramente educação, não será uma educação integral.

Só haverá educação católica se Cristo for o farol que ilumina, a meta que atrai, o modelo que se contempla. Como disse o Documento sobre a Educação Católica[3], promulgado há muito pela Sagrada Congregação para a Educação Católica: “no projeto educativo, Cristo é o fundamento. Ele revela e promove o sentido novo da existência e transforma-a, habilitando o homem a viver de maneira divina” (n. 34). Cristo deve ser a pedra angular; o princípio de coesão e de harmonia, “in quo omnia constant[4], como disse S. Paulo.

2. Integração arquitetônica de todos os saberes

Do que dissemos até aqui, vê-se claramente a necessidade da integração dos diversos saberes em uma unidade superior. Uma cultura é um sistema de valores destinados a criar uma visão do mundo. E o valor supremo de uma cultura cristã é a glória de Deus. Todo o atuar do que não é Deus, do que é relativo, tem sentido à medida em que dá glória a Deus. A escola, segundo o Documento anteriormente citado, “é um centro onde se elabora e se transmite uma concepção específica do mundo, do homem e da história” (n. 8). E mais adiante, em texto decisivo: “a referência implícita ou explícita a uma determinada concepção da vida (Weltanschaung) é, de fato, inevitável, pois faz parte da dinâmica de qualquer opção. Por isso é decisivo que cada um dos membros da comunidade escolar tenha presente tal visão da realidade, embora em diversos graus de consciência, quanto mais não seja para conferir unidade ao ensino.” (n. 29). Daí a insistência da Santa Sé na necessidade de “transmitir de modo sistemático e crítico a cultura à luz da fé e de educar o dinamismo das virtudes cristãs, promovendo assim a dupla síntese entre cultura e fé e entre fé e vida” (n. 49).

Os conhecimentos profanos e os conhecimentos correspondentes à fé devem, de certo modo, entrecruzar-se. É conhecida a célebre fórmula: Intellige ut credas, crede ut intelligas”. O conhecimento profano serve para se aprofundar na fé. E o conhecimento da fé leva a uma inteligência mais profunda das realidades profanas. Não creiamos que estamos dando uma educação católica pelo mero feito de que no programa de estudos, onde há tantas matérias ditadas segundo as mais diversas ideologias, agreguemos uma hora de religião. Assim como não podemos pensar que estamos fazendo uma emissora de TV católica pelo simples fato de, na programação geral, que produz uma verdadeira lavagem cerebral, agregamos dez minutos em que falamos de Cristo e da vida eterna. Quando dizemos que a cultura deve ser sobrenatural, queremos afirmar que o sobrenatural deve dar forma a toda a cultura, de maneira semelhante a como dizemos que a graça assume a natureza. A educação deve ser unitária: estou educando um adolescente que tem uma unidade de destino – natural e sobrenatural -, e não posso desintegrá-lo, ensinando-lhe segundo princípios diversos suas distintas dimensões. Como não existirá conflito na sociedade de hoje e no homem de hoje, assim como não vai existir tanta esquizofrenia quando parece que tudo o que se faz é para dividir o homem interiormente! Pensemos nas universidades, inclusive nas chamadas católicas, nas quais, com frequência, as matérias são ensinadas divergentemente, por professores que pensam cada um à sua maneira…

Talvez alguém dirá que a catequese não exige, de maneira absoluta, a existência de um colégio católico, pois poderia dar-se em locais separados e em horas extraescolares. Algo disso é verdadeiro. Sabemos que saíram excelentes católicos militantes de escolas públicas laicas, lugares onde estes aprenderam a aguçar seu sentido apostólico. Daí que só poder dar algumas horas de religião não justificaria o enorme esforço que implica a montagem de um colégio católico. Entretanto, a verdadeira educação não se faz por justaposição; não se trata de somar conhecimentos cristãos a uma conduta pagã; de ensinar o conteúdo da fé agregando-o a uma cosmovisão laicista. A formação humana e a formação religiosa não podem ser opostas, nem sequer paralelas ou sucessivas, devem imbricar-se uma na outra. O espírito cristão deve impregnar o ensino profano, procurar que as distintas matérias sejam consideradas à luz da Verdade divina e lograr que seja Deus a causa final de toda a atividade humana. Por fim, Deus é a causa primeira e o fim último de tudo. O pensar do cristão deve inspirar-se integralmente n’Ele e a Ele referir-se. Tudo deve levar a marca da fé. É claro que só o colégio católico está equipado para realizar semelhante labor, pois só ele é capaz de impregnar todos os ramos do saber no espírito evangélico.

Se nos custa entender isso, escutemos ao menos as seguintes palavras de um marxista, ele sim, bem consciente da necessidade de uma cosmovisão para formar o militante do Partido: “a força do marxismo – dizia – é a seguinte: um professor marxista, um docente marxista de qualquer disciplina particular, abre perspectivas sobre uma concepção global do mundo. A força de nossos professores marxistas está em fazer-nos sentir que esta disciplina particular toma seu sentido da concepção global do mundo que Marx apontou”. O colégio católico não pode ser tão somente uma instituição na qual se ensina a doutrina cristã junto com os demais conhecimentos, mas onde tudo, inclusive o que não é estritamente ensinamento religioso, ensine-se com espírito católico. Não creia que é melhor acumular cursos de religião ou multiplicar cursilhos de formação religiosa. Eles às vezes podem ser úteis. Porém, ainda prescindindo da dificuldade tão comum da falta de tempo disponível, tal procedimento é pouco, conforme a psicologia do adolescente e as leis da assimilação. A explicação dada em pequenas doses, de um modo discreto, porém categórico, por meio de advertências ocasionais por parte dos professores das diversas matérias profanas, é infinitamente melhor recebida pelos adolescentes, penetra em sua consciência quase sem se dar conta, e acaba por determinar sua concepção do mundo, do homem e da história.

III. EVANGELIZAR ATRAVÉS DAS MATÉRIAS

Como se vê, resulta hoje mais imperativa que nunca a necessidade de integrar todas as matérias dentro de uma escala e uma ordem hierárquica. Realizar a síntese e a integração arquitetônica dos diversos conteúdos do saber humano à luz da mensagem evangélica e na ordem do desenvolvimento das virtudes que devem caracterizar o cristão. Naturalmente que cada matéria tem sua própria autonomia – sã autonomia –, devendo ser desenvolvida segundo seus princípios específicos. Mas, ao mesmo tempo, há que contribuir à cosmovisão cristã. As diversas matérias não só não são antitéticas com a cosmovisão cristã, senão que, a respeito dela, constituem uma sorte de preparação evangélica, já que o autêntico desenvolvimento da natureza é uma espécie de preparação para a graça. Mais ainda, as matérias profanas recebem iluminação e complemento da cosmovisão cristã; o puro saber profano tem algo de indigência; a cosmovisão cristã alarga seus horizontes para uma melhor compreensão da ciência, do homem e da história. Porque o verdadeiro saber sobe o homem e sobre o mundo só se alcança quando se reconhece a realidade total do homem e de sua história de salvação, ou seja, quando se reconhece no Verbo de Deus encarnado, recapitulador de tudo, a luz verdadeira que ilumina a todo homem e a todas as coisas do homem. Daí a afirmação de Pio XII: “Todos os ramos do saber humano manifestam à inteligência as obras de Deus e suas leis naturais”; ao mesmo tempo que exortava a “fazer ver todas as coisas à luz da grande e divina Verdade” (6 de maio de 1951).

Tratemos agora de concretar mais esta aspiração da Igreja, recorrendo a diversas matérias, ainda que sem intentar abarcá-las em sua totalidade.

1. A catequese

Esta matéria – porque é necessário que seja também uma matéria e não apenas uma “vivência”, como às vezes se pretende – implica a comunicação de conteúdos, a saber, a revelação divina e a doutrina do Magistério, da Igreja que explicita dita revelação. Graças a ela, o adolescente aprenderá a distinguir o que se pode conhecer pela luz natural e o que só se nos oferece pela revelação. Três são os conhecimentos catequéticos fundamentais: o que é preciso crer (o Credo), o que é preciso esperar (o Pai-Nosso), o que é preciso amar (o duplo preceito da caridade e os Mandamentos). Mas não basta apenas aprender, é mister entranhar o aprendido, assimilá-lo, converter-lhe em algo próprio, fazê-lo não conhecimento, mas uma bandeira, militância. A catequese não pode ser uma matéria como as demais.

2. A filosofia

Diferente da catequese, a filosofia não parte da revelação, mas do conhecimento racional do mundo, do homem e de Deus, à luz da razão natural, buscando sempre as últimas causas da realidade. Nesta matéria é preciso evitar a todo custo que os adolescentes sejam formados no ecletismo, contentando-se o professor com a exposição dos diversos sistemas filosóficos; é preciso ensinar-lhes a discernir, com espírito crítico[5], a verdade do erro. O jovem deve sair do colégio católico com uma posição clara ante a vida, que lhe permita detectar os erros que pululam no ambiente e saber refutá-los convenientemente. Uma mente sólida não se forma com questões disputadas, com dúvidas. É preciso ir à filosofia perene, a dos clássicos, sobretudo a Santo Tomás. Sem evitar, naturalmente, o conhecimento de outras filosofias, mas julgadas a partir da filosofia perene, a única ancorada na realidade.

3. As ciências

O ensino das chamadas “ciências” físico-químicas deve comunicar ao jovem o conhecimento da matéria e de suas leis. Nas ciências se aprendem as leis da natureza. A alguns, este conhecimento os conduziu ao ateísmo: a natureza, absolutizada, acaba por converter-se em um sucedâneo de Deus. Para o marxista, a ciência é a única coisa, substitui a religião. Em nossos colégios devemos ensinar a física e a química com visão científica, sem dúvida, mas com um telão de fundo religioso. Deus é o conhecimento e o fim de toda lei física, de toda propriedade química, Criador tanto do elétron quanto da estrela. Por isso, o universo canta a glória do Criador. Este mundo, com suas leis admiráveis, é uma palavra, um poema, “quasi magnum carmen ineffabilis modulatoris”, dizia Santo Agostinho. O docente deve realizar sua própria síntese entre ciência e fé, assinalando como correspondente a presença de Deus em sua criação. A observação dos feitos se converte, desse modo, em um trampolim até Deus. A mesma Sagrada Escritura, em cada uma de suas páginas, suscita a admiração pela ordem, formosura e sabedoria que resplandecem na criação. Será preciso despertar nos alunos o sentido da admiração ante a grandeza da obra divina, admiração que é uma das melhores introduções à oração.

4. As matemáticas

Esta matéria ajuda a criar no aluno o hábito da exatidão ao tempo, que lhe permite ter experiência da “medida” das coisas. Naturalmente, não há diferença entre um manual de matemáticas composto por um autor cristão e outro composto por um ateu. Todavia, se o professor possuir sabedoria cristã, saberá despertar em seus alunos o culto da verdade desinteressada, lhes inspirará o sentido do rigor intelectual. As matemáticas exigem uma sorte de ascética não certamente estranha à ordem cristã. Esta ascética é tecida de atenção à realidade dada, de método, de humildade, de perseverança, de desejo por precisão e concisão. O aluno irá reparando que poderá se reencontrar com esforços semelhantes quando, já adulto, for moldar, por meio da reflexão, sua vida e a cidade terrestre em conformidade com a fé católica. Ademais, a beleza e a elegância de certas demonstrações, conduzi-lo-ão, às vezes, ao silêncio interior. Essa contemplação admirativa, esse contato com um valor que está próximo do absoluto, provoca uma dilatação interior, uma sublimação, uma purificação que não necessita sequer de analogia e afinidade com a oração. Só haverá que cuidar que o “esprit de géometrie” não extinga o “esprit de finesse”, segundo a conhecida expressão de Pascal.

5. A história

A importância desta matéria para a evangelização é enorme. Somente a memória do passado pode calibrar com exatidão qualquer análise do presente ou qualquer prospectiva. Aquela frase que diz ser a história “magistra vitae” tem aqui plena vigência.  Será preciso que o professor não se limite à mera narração dos feitos. Em sua mente deve ter bem estruturado o que se chama de “filosofia da história”, ainda melhor seria chamar “teologia da história”. O livro chave para esta formação de fundo será o imortal “De civitate Dei”, de Santo Agostinho, onde o Santo Doutor desenvolve o curso da história à luz do conflito teológico entre duas cidades, a Cidade de Deus e a Cidade de Satanás, fundadas ambas sobre o amor: a Cidade de Deus, sobre o amor de Deus até o desprezo do homem; a Cidade da Terra, sobre o amor do homem até o menosprezo de Deus. Todos os feitos, épocas e instituições, deverão ser estudadas em si, com a autonomia legítima que tal estudo requer, mas logo integrados naquela grandiosa visão crítica e teológica. Assim, o aluno saberá valorar adequadamente as diversas épocas e acontecimentos da história, e inclusive aprenderá a ler o diário com inteligência…

6. A geografia

Esta matéria constitui uma abertura ao meio próximo de vida, o qual, à sua vez, é ponte para passar ao orbe maior. A geografia permite captar melhor o homem, suas diversas raças, suas tradições; a do próprio país ajudará a acrescentar o amor à Pátria. A geografia física contribuirá no conhecimento de Deus Criador, belo, poderoso, inesgotável. A geografia humana permitirá conhecer melhor o homem, cooperador do criador.

7. A literatura

O objetivo próprio desta matéria é a aproximação da realidade com um conhecimento distinto ao meramente racional. O contato com os grandes autores, especialmente os clássicos universais e da língua espanhola[6] é deveras enriquecedor. Em um poema elevado, há sempre algo da inefabilidade de Deus. Particularmente o conhecimento cabal de nossa língua, em uma época em que cada vez se fala pior, permitirá ao cristão expressar sua fé no estilo e na característica do próprio idioma, o nosso tão rico e tão cheio de catolicidade, de um povo “que ainda reza a Jesus Cristo e ainda fala em espanhol”.

8. A música

A música – a boa música – não só é expressão de alegria e de amizade, como também é meio de elevação dos sentimentos humanos. A admiração pelo belo está muito unida com a aspiração ao bem. Já os antigos atribuíam capital importância à formação musical. Porque a música forma o homem. Os diversos tipos de música fazem os diversos tipos de homem: o homem sensual, o homem materialista, o homem superficial, o homem erótico, o homem virtuoso. É necessário que o colégio católico eduque no sentido do estético, do bom gosto, da música clássica. Sobretudo em nosso tempo, em que a música parece render culto à fealdade, ao ruído ensurdecedor que torna praticamente impossível todo tipo de vida interior. A verdadeira arte – musical ou visual – não só transmite o sentido das harmonias sensíveis, como também o sentido das verdades profundas, sobretudo as que possuem relação com o mistério. O autêntico papel da arte consiste em irradiar, através da sensível, o esplendor da verdade.

9. A educação física

A valoração do papel que tem o corpo no desenvolvimento integral da personalidade é uma das principais metas da educação física. Desde que o Verbo se fez carne, o corporal adquiriu uma grande elevação, porque foi aderido à divindade de Cristo com uma união indissolúvel. Se nosso corpo é chamado a ser nada menos que templo do Espírito Santo, é mister cuidá-lo, respeitá-lo, fortalecê-lo. O professor de ginástica deve estar imbuído deste sentido católico – não hedonista – do corpo humano.

Assim, pois, todas as matérias, cujo elenco não expusemos em sua totalidade, devem contribuir para forjar o homem integral, esse homem integral que precisamente por ser tal, é cristão e católico. Todas as matérias devem refletir Cristo, a Realeza de Cristo, no âmbito da cultura. Filosofia, ciências, matemáticas, história, geografia, literatura, música, educação física, tantas maneiras de evangelizar, de refletir a Cristo verdade, a Cristo exatidão, a Cristo medida, a Cristo Senhor da história, a Cristo Verbo encarnado em nosso espaço humano, a Cristo, o mais belo dos filhos dos homens. Em uma palavra: evangelizar é formar Cristo no aluno, fazer dele o outro Cristo.

IV. A FIGURA DO DOCENTE

É evidente que uma missão tão formidável exige pessoas bem formadas. Exaltemos aqui a figura do docente. Será ele quem determinará o caráter específico da Escola Católica, o que requer uma visão católica do mundo, especialmente da cultura, assim como uma pedagogia adaptada aos princípios evangélicos. Bem disse o Documento da Congregação para a Educação Católica ao que antes aludimos: “A consecução deste propósito específico da Escola Católica depende, portanto, não tanto das matérias ou dos programas, como principalmente das pessoas que nela trabalham. Dependerá muito da capacidade dos mestres que o ensino chegue a ser uma escola de fé, ou seja, uma transmissão da mensagem cristã. A síntese entre cultura e fé passa através da outra síntese entre fé e vida na pessoa dos educadores. A nobreza da tarefa a que são chamados reclama que, à imitação do único Mestre Cristo, revelem o mistério cristão não só com a palavra, mas também em cada um dos seus gestos e com o seu comportamento. Compreende-se assim a diferença fundamental que existe entre uma escola, em que o ensino está impregnado de espírito cristão, e uma escola, que se limita a juntar a religião às outras matérias escolares.” (n. 43).

Conta Platão que os jovens se acercavam espontaneamente a Sócrates para ouvir-lhe falar, porque tinha consciência de que ele era mestre, isto é, doutor, em outas palavras, que podia ensinar porque sabia; ademais, isto era o mais importante, porque Sócrates era uma só coisa com aquilo que ensinava; ensinava com sua própria pessoa, com o espelho de seu exemplo. Platão conclui dele que o mestre por excelência é aquele que tem uma alma onde reina a ordem. Adverte Caturelli que esta ordem de que fala Platão não é uma ordem inventada ou criada pelo próprio mestre; é uma ordem descoberta por ele e feito sua até identificá-la consigo mesmo, até fazê-la uma consigo. Na alma do mestre reina a ordem dos princípios que fluem do descobrimento da verdade, e porque esta verdade possuída é comum, o mestre pode se comunicar com os outros, entrar em comunhão com os estudantes. Mas para isso, o mestre deve ser como Sócrates, que era um com o que ensinava, e por isso os adolescentes iam lhe escutar.

O mestre: um homem de ordem, uma alma arquitetônica. Daí a necessidade da própria formação. Ninguém dá o que não tem. Não basta só conhecer mais ou menos a matéria que se ensina. Se quer realmente imbuí-la de catolicidade, será necessário que o docente encare com firmeza sua própria formação – nunca terminada, especialmente no âmbito da filosofia e da teologia, assim como no campo da história, tão importante para compreender o sentido dos acontecimentos. São, sobretudo, estas matérias, transcendentes a todas as outras, as que criam ordem na alma do professor, permitindo que este “ubique” sua matéria específica na cosmovisão cristã. Por isso, a tarefa da educação exige no docente, verdadeiro ministro do Verbo, uma penetração e aprofundamento constante na Verdade, assim como um perfeccionismo progressivo de sua vida espiritual, isto é, de sua total humanidade concreta, pois somente tem possibilidade de ensinar aquele que, como acabamos de dizer, está identificado com a verdade que ensina.

Se queremos que nossos adolescentes logrem uma formação sintética, arquitetônica, o primeiro é lograr esta síntese em nós mesmos, já que todos estamos bastante fragmentados ou desintegrados, em boa parte por culpa deste mundo desleal em que vivemos, mundo apóstata, de verdades enlouquecidas. Lograr a unidade interior: eis aqui nossa primeira meta. Temos que aprender a elaborar essa síntese de todas as dimensões de nosso ser, pôr em harmonia nossa inteligência e nossa vontade, nosso coração e nossos sentidos. Recobrar uma ordem, um cosmos, em contraposição ao caos em que estamos hoje imersos. E a ele dar forma com toda a luz da graça, com a força da graça, com o calor da graça.

Temos que fazer de nós o santo, o docente santo. Temos que ser santos e fundadores, porque necessitamos criar instituições que realmente sejam canais dessa cultura que desejamos. A tendência à santidade, a uma santidade fundacional, encherá nossa alma de zelo apostólico, dessa diligência que é calor da alma inflamada no amor de Deus e que ama o próximo por amor a Deus. Zelo ao ver como as almas se corrompem pelo influxo demolidor da sociedade de nosso tempo, que nada ou quase nada nos ajuda em nossa empresa. Zelo ao ver que Cristo, que quer fazer-se Um, desposar-se com cada um de nossos alunos, é por eles preterido e postergado em troca, escolhem os amantes que lhes oferecem o mundo moderno. Se não sentimos este zelo em nosso coração, quer dizer que ainda temos muito de funcionário e pouco de educador, de apóstolo. Mas sempre há tempo para retificar o caminho.

 V. FORMAR HERÓIS

Finalmente, não esquecemos que devemos formar para nosso tempo. Alguns interpretam esta afirmação como se devêssemos preparar a nossos jovens para “adaptar-se” ao mundo moderno. Nada mais longe do ideal de um colégio católico. Há duas maneiras de ser modernos: ou fazendo o que todos fazem ou sabendo enfrentar os erros do próprio tempo com espírito criador.

O Documento da Sagrada Congregação, ao que repetidamente nos referimos, diz que na sociedade atual se faz necessário garantir a presença do pensamento cristão em meio à “diversidade de concepções e de comportamentos” de nossa época (cf. n. 11). E diz mais: “Se se escutarem as exigências mais profundas de uma sociedade caracterizada pelo desenvolvimento científico e tecnológico, que poderia desembocar na despersonalização e na massificação, e se se quiser dar uma resposta adequada a tais exigências, surge com evidência a necessidade de que a escola seja realmente educativa, isto é, capaz de formar personalidades fortes e responsáveis, capazes de opções livres e acertadas.” (n. 31).

Personalidades fortes, capazes de discernir o que é bom do que é mau, que amem a justiça e odeiem a iniquidade, que abracem a verdade e tenham aversão ao erro. Isso é o que necessitamos. Por causa do pensamento cristão, hoje menos que nunca temos direito de formar mentalidades gregárias, católicos “jujuba”. O inimigo de Deus e da Igreja tem um especial interesse por dominar o campo da cultura. Sabemos que na Itália, os dirigentes do chamado “eurocomunismo” disseram que neste momento não lhes interessava tanto “tomar o poder” quanto “tomar a cultura”. O que toma a cultura dá forma ao país. Nós, católicos, temos que trabalhar intensamente para dar forma católica à cultura em nossa Pátria. Devemos formar jovens de caráter, capazes de dizer “não” à massificação contemporânea, essa terrível ditadura do espírito, pior que qualquer opressão física. A educação é obra de “artesão”, não de produção massiva ou em série. É preciso formar jovens com ideais, com escalas de valores, com uma visão verdadeiramente católica de mundo. Se ao menos cada ano saírem de nossos colégios quatro, só quatro alunos realmente bem formados e militantes, rapidamente mudaria o ambiente de nossa Pátria. Resolvamo-nos, pois, a educar. Tal é nossa missão, nossa difícil, mas fascinante missão.

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* Tradução livre e notas por Josimar de S. Rodrigues Junior.

[2] Cf. 1 Cor 9, 16

[3]A Escola Católica, Sagrada Congregação para a Educação Católica, 19 de março de 1977.

[4] Cf. Col 1, 17.

[5]Ao longo do texto, o autor se refere a “espírito crítico” no sentido original do termo, isto é, κριτική (kritiké), a arte do reto julgamento, que em nada tem a ver com a “pedagogia histórico-crítica”, de Dermeval Saviani, concebida a partir do materialismo histórico.

[6] Aqui o autor trata da língua espanhola por ser sua língua própria.

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